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Femrecs: Canon vs Fandom e como tirar o mofo de velhas histórias



Em sua edição de número 20, a newsletter Femrecs, criada por Letícia Arcoverde e voltada para cultura pop feita por mulheres, abordou o ato de se mudar o gênero, raça ou circunstâncias de protagonistas clássicos e as reações de dois tipos de fandom: o transformador e o curador. Ela fez essa discussão a partir de duas adaptações de Sherlock Holmes: Elementary e o livro A Study in Scarlet Women.

Reproduzimos uma parte do texto aqui porque vale muito a leitura para se pensar em fandom e transformações de obras originais e recomendamos para que quem esteja interessado ou interessada em refletir sobre o papel feminino na cultura pop assine a newsletter (link).

Por Letícia Arcoverde

"(...) O ato de mudar o gênero, a raça ou as circunstâncias de protagonistas clássicos não é novidade para ninguém que acompanha qualquer fandom na internet. É uma das atividades preferidas do fandom "transformador", que é uma definição que eu aprendi ano passado e achei muito útil. Em linhas gerais, há dois tipos de fandom: o "curador", que está mais interessado em colecionar, saber todo tipo de informação sobre o universo e conversar sobre esse conhecimento em detalhe. São os fãs que abraçam o canon como se fosse de fato algo oficial e irreversível, e que podem se irritar quando esse canon de repente passa a incluir mais pessoas diferentes deles. Eles preferem concentrar o conhecimento e excluir qualquer pessoa que eles consideram não encaixar no grupo deles, geralmente usando a desculpa de que elas não são "fãs de verdade".

Já o fandom "transformador" é o que está mais interessado em suas próprias leituras do livro/filme/série em questão do que no que "o autor quiz dizer". É o que pega o material original e transforma em fanfics em que os personagens coadjuvantes são os protagonistas, em que a orientação sexual de determinados personagens são outras, em que a história se passa em universos alternativos. É o que já fazia fanarts da Hermione negra muito antes do casting da peça de Cursed Child,  e que prefere mergulhar no psicológico dos personagens e jogá-los em situações novas para ver como eles reagiriam, ao invés e destrinchar um universo que já existe e se sentir superior por ter muito conhecimento dele.

Não é surpresa que o tipo de fandom "curador" é majoritariamente formado por homens, enquanto o fandom "transformador" é carregado por mulheres. Um se encontra no Reddit e outro no Tumblr. Um é cheio de "nerds" que se acham oprimidos porque não eram populares na escola, ignorando que o que eles consideravam "cultura nerd" no passado hoje é basicamente sinônimo de "cultura pop", e o outro é formado pelas "fake geek girls" que o primeiro abomina.

Em parte, o que está acontecendo em muitos desses casos de remakes "sem mofo" é que os "powers that be" (termo que muita gente no fandom usa para designar os estúdios, as editoras, as pessoas que de fato detêm o copyright dos produtos) estão tomando decisões não só para o primeiro tipo de fandom, mas também para o segundo (até a coisa empacar em algum departamento de marketing machista que esconde as personagens dos posters ou não lança action figures da protagonista). Aquela coisa de na vida, nada se cria, tudo se transforma? Ninguém sabe disso melhor do que estúdios de Hollywood, ou uma garota de 13 anos escrevendo NC-17 femslash genderbent AU.



Esse texto todo saiu porque eu queria recomendar um livro, mas (além de ter me empolgado na intro) não queria falar em tanta profundidade sobre ele porque seria difícil fazer isso sem dar grandes spoilers.

Um campo fértil para reimaginações de histórias antigas são as histórias tão antigas que já estão no domínio público, que é basicamente uma forma de fanfics poderem virar livros. Como a quantidade absurda de novas versões de Sherlock Holmes indica, os personagens de Arthur Conan Doyle estão liberadíssimos já faz um tempo.

É difícil até identificar o que é derivado de Sherlock Holmes quando seu formato deu origem à receita básica de tantas séries de duplas de detetives, mas na TV os principais expoentes da fanfic Sherlockiana são Elementary, na CBS, e Sherlock, na BBC. Ambas trouxeram Sherlock Holmes e os outros personagens para o presente. Mas foi Elementary que fez isso com menos frequência (na maior parte do tempo, a série é um procedural de polícia, e não uma releitura de todos os casos dos livros), mas com mais precisão e intenção.

[A seguir spoilers da primeira temporada de Elementary] Uma das transformações mais interessantes que Elementary fez foi um "genderbent"– no caso do grande vilão Moriarty. Mas a grande genialidade foi combinar Moriarty com a personagem de Irene Adler. Irene é uma personagem mínima nos livros, mas que é relembrada com frequência porque é a única mulher marcante tanto para os livros quanto para o personagem Sherlock Holmes. Como ela consegue enganá-lo, ele a idealiza como "A Mulher", ou a única representante do gênero que ele considera relevante.

No mundo de Elementary que, além de se passar no presente e não na Inglaterra vitoriana já traz uma mulher excepcional no papel de Joan Watson, essa ideia não faz o menor sentido. Mas ela é usada pelos roteiristas com uma armadilha: conhecemos uma Irene Adler com quem Sherlock se envolveu e se apaixonou, e quem ele idealizou como sendo "A" mulher de sua vida. E depois descobrimos,  junto com ele, que ela era apenas uma ilusão, e Irene é na verdade Moriarty enganando Sherlock. Não existe "A" mulher que representa todo seu gênero. Existem mulheres, indivíduos que são seres humanos (que podem ser desde médicas e detetives em treinamento até grandes vilãs).

Esse é um (grande) plot twist de Elementary, e também é a base do livro que eu finalmente vou recomendar (aleluia!): A Study in Scarlet Women, da Sherry Thomas. O livro é o primeiro de uma série com uma versão feminina de Sherlock Holmes no centro: Charlotte Holmes, que tem a mente do grande detetive, mas não tem a sua mesma liberdade de ir e vir na sociedade inglesa do século 19. Ela então inventa Sherlock Holmes, que possui uma doença que o impede de aparecer em público, mas que conta com uma irmã-secretária que recolhe as informações necessárias para solucionar os mistérios.
 

 Eu já havia lido um livro de romance excelente da Sherry Thomas (My Beautiful Enemy, e sua prequel A Hidden Blade, que têm uma ótima heroína-alfa chinesa que luta artes marciais e um herói-beta inglês apaixonante), mas descobri recentemente que ela gosta de navegar por vários gêneros diferentes. Além de romance, já escreveu fantasia YA  e agora vai começar essa série de mistério (um feito que ficou ainda mais impressionante depois que eu descobri que inglês nem é a primeira língua dela, que se mudou da China para os EUA quando tinha 13 anos).


A Study in Scarlet Women tem seus defeitos, entre eles o uso nem sempre necessário de mais de um narrador e uma demora para entrar na mente da protagonista, Charlotte. Mas eu perdoo esses problemas porque eles na verdade aumentam o potencial da série; deu pra ver que o resultado meio desajeitado está lá preparando terreno para o futuro (que inclui o que a Sherry Thomas chama de um "longo arco de romance" que me conquistou em uma cena porque pode confiar numa autora de romance pra construir tensão).



Mas o que eu mais gostei foi a atualização que ela fez não só na personagem de Charlotte mas em diversos outros personagens do original. A Study in Scarlet (Um Estudo em Vermelho) é o nome do primeiro livro de Conan Doyle, e "scarlet women" é a expressão comum para mulheres que não se encaixavam no que era esperado delas da sociedade e ficavam marcadas por escândalos. Sherry Thomas transforma a própria Charlotte em uma delas, e cria um mistério que envolve diversas outras mulheres impróprias para sua época, numa trama intrincada em que diversos atributos femininos são usados com armas e recursos.
 
Charlotte tem a mente de Sherlock Holmes, que a faz ver o mundo com uma lógica que não compreende completamente a subjugação das mulheres. Mas por ser uma mulher, e não um homem branco excepcional, ela é obrigada a se adaptar, a aprender a esconder sua inteligência, a conversar sobre assuntos fúteis, a entender mais sobre moda, a se portar como mulher extremamente feminina e – aparentemente – inofensiva. Se sua mente perspicaz é seu primeiro "superpoder", sua capacidade de adaptação é sua identidade secreta, e sua posição como mulher "escarlate", capaz de reconhecer outras e combinar seus poderes, é seu grande triunfo.

A Study in Scarlet Women consegue tirar o mofo de uma história que já vimos inúmeras vezes, não só ao mudar o gênero de vários personagens velhos conhecidos, mas ao complicar suas posições no universo em que o livro se passa, sem perder a essência do original. Nem mesmo Charlotte Holmes é "A" mulher no mundo escrito por Sherry Thomas – o que só faz bem para a história, pois ao invés de uma, ganhamos várias com quem podemos nos envolver."


***

A próxima série a trazer uma mudança no gênero de Watson será a finlandesa SHERLOCK: NORTH, que se passará durante o período comentado em "A Aventura da Casa Vazia", em que Sherlock Holmes finge sua morte e se abriga na Finlândia buscando desbaratar a rede de Moriarty. Assim como Sherlock, a série também se passará nos tempos modernos. A série está prevista para estrear em 2018.

Para discussões sobre Sherlock e o fandom da série, veja o que já publicamos aqui.
 

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